sexta-feira, 25 de março de 2011

Decoração

Da construção narrativa complexa ao aproveitamento do acidente, da excentricidade material do luxo à colagem bruta do vernacular, a pós-modernidade tudo justifica. Ao propor a decoração por si só, mesmo quando se articula através de uma estrutura de ideias, de materiais, de funções, o que propõe é quase sempre o individualismo — sem identidade definida —, a moda, a irrealidade. A comunicação e o apelo aos sentidos que promove é evasiva e não requer compromisso. Quantas vezes não faz desse monólogo o argumento do seu programa?! 

Um rótulo ou uma imagem pós-moderna de um vinho não é diferente. Valoriza quase sempre a irrealidade, a estória e a moda, em vez do material, do objecto e da adequação. No último concurso de imagem do vinho organizado pela Revista de Vinhos (embora demasiado regional, o júri incluía, felizmente, profissionais de design), o prémio mais importante foi para um vinho cujo design de imagem poderemos situar nessa valorização decorativa pós-moderna — o vinho Arrepiado Regional Alentejano tinto 2007 da Herdade do Arrepiado.

Imagem excêntrica, entra-nos na mente pelo seu lado decorativo, barroco, de exuberância formal. Informação reduzida, carácter evasivo mas de forte apelo visual, encontra justificação plena nas palavras da sua autora: "O meu principal objectivo quando desenho é comunicar, e comunicar sem grandes argumentos e explicações, de forma o mais intuitiva possível. Tento acrescentar ao produto sensações visuais interessantes que joguem com todos os sentidos (...)"
Não pondo em causa o objecto premiado, não nos entusiasma nem a solução nem o método. Um rótulo ou uma imagem de um vinho é sempre um projecto de design. Por mais intervenientes de outras áreas que interfiram ou de ideias que abrace durante o processo. Enquanto projecto, deve obedecer a um programa, identificar a hierarquia de funções e apresentar soluções inovadoras ou conservadoras que o sirvam. Os designers têm hoje a obrigação de saber reconhecer as limitações da modernidade mas também a nebulosidade pós-moderna que nem sempre permite vislumbrar o essencial.







segunda-feira, 14 de março de 2011

O excesso de "brand" no vinho

A ideia de marca (brand, para quem gosta do termo em inglês) persegue-nos por todo o lado. Da garrafa de água ao molho de coentros, passando pelos serviços e iniciativas estatais (Simplex, Allgarve), todos os produtos, naturais ou processados, bons ou maus, essenciais ou inúteis, parecem estar hoje condenados ao implacável "espírito da identidade".

Os vinhos portugueses não são excepção. Centenas de novos produtores multiplicam todos os anos nomes, categorias, sub-categorias de nomes de vinhos regionais e, ultimamente, vinhos de mistura de regiões e até vinhos "apátridas". Uma confusão para o consumidor menos atento já que até os vinhos de um mesmo produtor se apresentam com imagens distintas e distantes entre si. Investe-se cada vez mais no design e no "conceito" dos nomes. Todos procuram "algo diferente". Para isso elaboram-se narrativas e, quantas vezes, discursos sem essência (ver texto anterior), mas para quê? Para que um determinado vinho, semelhante a tantos outros, pretenda um significado para o qual não tem potencial. A excessiva e forçada individualidade imposta aos produtos denuncia quase sempre o contrário: ausência de carácter.

A empresa japonesa MUJI, recentemente chegada a Portugal (que nada tem a ver com vinhos, embora no Japão se dedique também à alimentação), apostou há mais de trinta anos na inversão deste processo. O nome MUJI, sendo ele já uma marca, significa "sem marca". Esta aparente incoerência não mancha o essencial, que aqui se pretende relevar: o investimento que a empresa faz não numa filosofia de marca mas antes no design, na qualidade global de cada produto que vende. E a preços razoavelmente justos.

Por tudo isto podemos afirmar que faz falta aos vinhos portugueses um pouco da estratégia MUJI. A exemplo do excesso de madeira no vinho que caracterizou a nossa produção nos últimos anos – e que felizmente passou de moda –, esperemos que o mesmo suceda ao excesso de identidade, de efeitos visuais, de marcas e de nomes. Que a lógica e a credibilidade da comunicação vinguem pelo mais importante: a qualidade do vinho. Já que mais não seja para bem dos consumidores.

quinta-feira, 10 de março de 2011

De partir o coração – Nota breve III

Há rótulos de vinho que, pior do que serem maus tecnicamente, são incompreensíveis nos dias de hoje... A todos os níveis. O vinho Ping'amor Reserva, da Casa Agrícola Paciência, é um caso paradigmático. O seu rótulo, de formato exótico, para além de não comunicar quase nada, é formalmente deprimente. Apresenta o nome do vinho – de gosto no mínimo duvidoso – em texto mal composto, cores desajustadas que cortam o contraste necessário à boa leitura e umas aspas/pingos horizontais (?) sem que se perceba o seu sentido. O único dado que acrescenta para o consumidor é a palavra Reserva. O contra-rótulo lá vai incluindo a informação obrigatória, embora desordenada, sem critérios hierárquicos e de legibilidade. No meio desta anarquia tipográfica podemos ler o seguinte "poema": "Envolvente e sedutor, para momentos inesquecíveis". Depois de rodarmos a garrafa algumas vezes, descobrimos que afinal rótulo e contra-rótulo formam um coração partido em dois.

Que envolvimento e sedução nos pode trazer um vinho com uma imagem destas?! Uma coisa é certa: trata-se de um rótulo que parte realmente o coração...

terça-feira, 1 de março de 2011

A retórica do vazio

A importância que os valores simbólico e estético têm hoje numa garrafa de vinho, e à volta dela, merece reflexão. O que hoje se espera de um rótulo, ou de uma imagem global de um vinho, não é mais o dispositivo informativo (e de imposição normativa quantas vezes desajustada em critério gráfico e no tempo) mas antes uma narrativa a transbordar significados. Cumprida a primeira fase, os rótulos – tal como a comunicação publicitária em geral –, tornam-se cada vez mais narrativas carregadas de valores estético e simbólico, de apelo aos nossos sentidos. Estas mensagens constroem-se normalmente demasiado distantes do produto, do cliente ou da interacção entre ambos. Por isso denotam algum desprezo pelo receptor, pela sua leitura e interpretação.

O vinho 8 (oito), da Adega Mayor, é um bom exemplo do que atrás se disse. O vinho chama-se 8 mas estamos em crer que se poderia chamar 437, ou 5, ou até 0. Razões haveria para o justificar com facilidade e pretensa erudição. Tal como se justifica o vinho 7: "7 artes, 7 dias da semana, 7 pecados mortais, 7 graus da perfeição, 7 chakras da nossa energia" (sic). Sobre o 8, podemos ler: "No dia 08/08/2008 o mundo assistiu à abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim. 
Nesse mesmo dia, às 8 da manhã em Portugal, 8 pessoas começaram a encher a primeira de 8008 garrafas numeradas, celebrando o espírito da criação." E o filme promocional do vinho termina com: "8 não é muito nem pouco, é eterno!" A construção até pode ser bonita, poética, metafísica (numerologia?) ou supersticiosa mas... e depois?

A embalagem e o rótulo do vinho 8 seguem as pisadas da sua retórica "conceptual" mas agora em exercício estilístico puro. A imagem é, sem dúvida, original, como pretendem os seus promotores. Tem um grafismo cuidado e foi inclusivamente premiada em concurso promovido por uma revista de marketing e publicidade. Reconhecemos que o recurso à literalidade, à "mera" função, à evocação de um qualquer produto se pode tornar pobre e aborrecida; mas a "banha da cobra" (qual memória descritiva de escola) que nos tentam impingir para vender o vinho, descredibiliza o próprio vinho e quem o faz, o design e a comunicação séria. É demasiado investimento no lado errado, no lado de fora do programa. Ainda que rico em elementos, torna-se um discurso difícil de agarrar. Escapa-se por entre os dedos porque é, acima de tudo, um discurso vazio.