segunda-feira, 29 de março de 2010

Ervamoira em retrato

Visitar a Quinta da Ervamoira da Ramos Pinto é uma experiência única. O lugar inóspito e a dificuldade do acesso a partir de Muxagata, intensificam o deslumbre da chegada: um cenário fantástico que se revela ao dobrarmos o cume do monte. Toda a envolvente das vinhas, vestidas nos tons da época, fazem da experiência motivo suficiente para se regressar. A simpatia e a entrega da Sónia — que nos vai buscar, faz de guia da visita, serve à mesa e dirige as provas — torna o dia certamente inesquecível. Foi com ela também, enquanto motorista e cicerone, que visitámos as gravuras do Côa, ali bem perto. Gravuras a quem se deve a continuidade da quinta. A casa, de arquitectura despojada, restaurada com materiais tradicionais, é agradável e não compromete, ganhando maior expressão nas modernas instalações do piso térreo — o pequeno museu, galeria e loja — e no alpendre. O museu conta a história do lugar primitivo, do empreendimento da plantação da vinha e da casa Adriano Ramos Pinto desde o seu fundador até aos actuais proprietários (grupo francês ligado ao champanhe).

É reconhecido o pioneirismo de Adriano Ramos-Pinto em Portugal, na implementação de uma estratégia promocional para os seus vinhos, nomeadamente pela importância que atribuiu a uma imagem global de qualidade. Contratou autores estrangeiros de relevo para a execução dos seus cartazes, como Cappiello (o mais famoso dos cartazistas europeus, nos anos 10, segundo José Augusto-França), Metlicovitz e Rossotti. Em continuidade, embora já sem o carácter inovador de outros tempos, o actual design visual dos vinhos Ramos Pinto é cuidado. Alguns exemplos merecem mesmo nota de realce como o renovado Duas Quintas Reserva. O seu rótulo apresenta uma imagem fotográfica, a preto e branco, da bela Quinta de Ervamoira (que juntamente com a Quinta dos Bons Ares dá origem a este nome/vinho). Recurso pouco habitual em rótulos de vinho — sem nada que o justifique —, a fotografia regista e é o documento por excelência. Quando a preto e branco, ainda mais se reforça esse carácter documental, de pormenor denotativo, sem perder as suas qualidades expressivas. Imagem de grande qualidade e beleza que, combinada com a tipografia clássica, a preto e ouro, de apurado rigor formal e técnico (tanto no rótulo como no contra-rótulo), dão sequência ao profissionalismo imposto por Adriano Ramos-Pinto nas primeiras décadas do século XX.

Enquanto muitas das imagens artísticas (ou pseudo-artísticas) nos rótulos contemporâneos de vinhos nos desviam ou lhes retiram significado, a imagem da Quinta da Ervamoira no Duas Quintas Reserva tem a virtude de ser clara e de nos remeter para uma convergência de sentido. É por ela que o valor do lugar se venera porque, como afirmava Susan Sontag, "fotografar é atribuir importância".



terça-feira, 9 de março de 2010

O belo, o bom e o útil — Esporão Monocastas

Giambattista Bodoni, tipógrafo italiano do séc. XVIII, no seu Manuale Tipografico (Parma, 1818) referia o belo, o bom e o útil como atributos para a excelência na comunicação tipográfica. Adaptados aos dias de hoje, e no que concerne ao design, esses conceitos mantêm-se actuais. Os dispositivos gráficos (livros, cartazes, sites, rótulos, etc.) existem essencialmente para levar informação a quem dela necessita ou recorra — serem úteis. Quando expõem a informação com rigor formal e conceptual, sem ruídos, significa serem bons. Ao apresentarem a informação de modo a que toque a nossa sensibilidade e crie apetência, significa serem belos... No entanto sabemos que organizar muitos conteúdos informativos de forma clara, harmoniosa, e obter com o resultado valor expressivo, não é tarefa fácil. É quase sempre um desafio que põe à prova as competências dos designers.

A Herdade do Esporão tem vindo a renovar a imagem gráfica dos seus vinhos com critérios de excelência. Temos acompanhado de perto essa mudança e razões houve já para dela se falar aqui... Analisamos agora o conjunto dos novos Esporão Monocastas (Aragonês, Alicante Buschet e Touriga Nacional), vinhos alentejanos de qualidade reconhecida e preço considerável. Trata-se de uma mudança radical, mais do que necessária, num produto que o exigia. A nova imagem dos Monocastas assenta em três vectores fundamentais: informação textual exaustiva, informação iconográfica contida e ausência de elementos decorativos. A opção espartana da iconografia (parra das castas e mapa de localização de Portugal) parece esconder o cuidado apurado do design global. Mas uma atenção redobrada revela-nos o sentido expressivo dos pormenores. A utilização de relevo e verniz reforça esse sentido. A cor segue o mesmo critério de sobriedade. Cada vinho/casta é caracterizado por tons escuros, sofisticados e elegantes — cinza, azul plúmbeo e castanho — no logótipo, nos títulos do texto e sobretudo na gargantilha (atendendo à difícil execução técnica do nome na vertical, dispensava-se aqui a sua inclusão). É o texto (tipografia) que, contudo, domina a imagem da garrafa. Começando pelas iniciais, que se impõem pelo seu corpo, espessura e elegância geométrica de desenho. Estendendo-se depois por colunas harmoniosas e funcionais, bem compostas no mesmo tipo moderno, e impressas num papel cru, texturado, de formato considerável. Falam, de forma técnica e rigorosa — e sem os exageros apologéticos tão típicos em casos semelhantes — da vindima, da casta, do terroir... Como se de um jornal aberto se tratasse. Não cansam nem têm que ser lidas em sequência. O resultado é o da beleza da simplicidade funcional. Design que afirma e prestigia a relação entre a exigência do conteúdo e do contentor.

Ao evocarmos Bodoni, o Belo, o Bom e o Útil, relevamos a importância das funções num projecto de design. Ao mesmo tempo que reconhecemos que a beleza não tem que estar na decoração mas na própria funcionalidade. Sempre que utilidade, qualidade e beleza se fundem, emerge o melhor significado do design.